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A Sereia

Ó, meu amado, repousa agora inerte em meu colo, as marés balançam seus braços como num adeus, seus cabelos longos e claros como se ao vento. Minhas lágrimas perdem-se na água salgada do mar, mas meu sofrimento não carece das lágrimas para ser notado. Não sei há quantas horas velo seu corpo, mas que me importa o tempo? Vago há séculos pelos mares deste mundo.

Não sei de onde vim nem por que fui criada assim. Nunca se apresentou a mim um Deus, um Criador, um Pai ou uma Mãe. Existo e isso é tudo. Não me resta outra opção que não a de seguir vivendo.

Tenho um absoluto fascínio pela sua raça. Os que estão acima da superfície, e movem-se com suas pernas e pés. Não satisfeitos em andar sobre a terra, navegam sobre as águas e sob a superfície, com suas embarcações. Voam como os pássaros com suas asas falsas.

Você olhou para mim, meu amor? Não, claro que não, apenas o movimento das águas fez com que um dos seus olhos se abrisse. Eu o fecho com um beijo. Ainda me lembro da primeira vez que vi esses olhos, negros e intensos.

Numa das minhas viagens pelos mares, cheguei a esta costa. Era noite, mas a praia estava tomada pelos seus, ouvia-se música e falava-se alto. Observava a multidão quando estrondos e clarões no céu tomaram-me de surpresa e, assustada, rapidamente mergulhei. No entanto, olhando para o céu por de dentro da água, vi cores tão lindas que decidi retornar à superfície.

Maravilhada, vi luzes que explodiam no céu, em formas circulares, como gigantescos corais multicores, formando-se e desaparecendo no céu. Na praia, as pessoas gritavam e abraçavam-se; com certeza uma celebração chegara ao auge. De uma das torres brilhantes, lágrimas prateadas caíam em direção à terra. O espetáculo durou mais alguns minutos, e os seus ainda permaneceram na praia por muito tempo.

Fiquei nesta região. Gostava de observá-los nas praias, brincando nas ondas com suas pranchas, saltando dos montes com suas asas coloridas, chegando graciosamente à areia. Também me interessavam seus ídolos, como aquele cuja cabeça ornada com um grande capacete fora esculpida em uma enorme pedra. Ou aquele para quem fizeram uma grande estátua, de braços abertos, no alto de um monte elevado.

A cada doze luas cheias no céu, meu corpo se transforma e posso andar pela terra como os da sua raça. É mais um dos mistérios que regem minha existência. Sinto um forte impulso de dirigir-me à costa, e entro numa espécie de transe. Quando volto a mim, tenho pernas no lugar do meu rabo de peixe.

Minha transformação aconteceu poucos dias após a grande festa. Caminhava pela areia, a Lua seguia alta no céu, a praia estava deserta. Ao longe vi um fogo aceso, alguns dos seus estavam reunidos. Caminhei em sua direção.

Quando me aproximava, um deles se afastou do grupo em direção à beira do mar. Era você. Cheguei mais perto, silenciosa. Você cambaleava um pouco, creio que estava naquele estado que tantas vezes antes já havia notado em outros dos seus, com o hálito forte e desagradável a sair de sua boca.

Observei-o por alguns instantes, até que você perdeu o equilíbrio, precipitando-se em direção à areia. Corri ao seu encontro e lhe apoiei, com o que você se assustou e se afastou de mim. E então olhou para mim. Eu não usava as vestes com que todos ali se cobriam, e você ficou ali parado, incrédulo, ainda cambaleando. Balbuciou algo que, claro, não compreendi. Apenas sorri para você. E cantei.

Ao abrir minha boca, o ar foi invadido por um milhão de melodias harmoniosas, o som da minha voz, cristalino. Você me olhou extasiado e já sem vontade própria. Entrei no mar, sempre cantando, e você me seguiu, incapaz de pensar ou resistir. Porém, antes mesmo de tocar a espuma das ondas, você caiu novamente. E desta vez não conseguiu se levantar. Permaneci um pouco mais observando você, mas o alvorecer se aproximava e retornei para o fundo do mar.

No dia seguinte, já de volta à minha forma natural, procurei por você na orla. Não podia evitá-lo. Encontrei-o já ao crepúsculo, cercado de seus amigos, sentado em uma daquelas pranchas. Aos poucos eles foram embora, mas você permaneceu.

Surgi para você de dentro das águas. Seu olhar não foi de espanto, mas de felicidade. Você lembrava e estava ali na esperança de encontrar-me novamente! Olhei bem para você, seu corpo magro e forte, a pele morena. Você sorriu para mim. Mais uma vez cantei para você e da minha garganta surgiram novas melodias infinitas, que nos envolveram por completo. Mergulhei.

Poucos segundos depois você já estava embaixo d’água. Nadei ao seu encontro. Abraçamo-nos, beijei seus lábios e seus olhos, minhas mãos perderam-se em seus cabelos, apertei sua cabeça contra meu peito. Os minutos se passaram e, já com lágrimas nos meus olhos, abracei-lhe com mais força quando você começou a se debater, até ficar calmo e em silêncio. E ficamos assim, abraçados e em paz, até que a escuridão da noite nos envolveu por completo.

Agora deitarei seu corpo no mais profundo dos abismos. Você estará em boa companhia, todos os que já amei e os que ainda amarei. Esta é minha maldição, minha sina. Amar os da sua espécie e matá-los com o meu amor, com minha paixão que consome rápido demais, com meu desejo que não se realiza, e que me condena à eterna solidão. Adeus, meu amor, adeus.

Comentários

Aurélio Lisboa disse…
Bravo!

Escrever é bom, mostrando é melhor ainda.
Relaxe, respire a vida que a alma vai corroer a "máscara" de "dentro prá fora", ou o mundo resgata você "de fora prá dentro", pois tudo é uma questão de manter " a mente experta, a espinha ereta (o pau também é bom)e o coração tranquilo".
Bjs
Do irmão que mais te ama.

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