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Toc toc toc

 Toc toc toc.

O homem olhou para a porta. 

Silêncio. 

Um minuto. Uma eternidade.

Toc toc toc.

Levantou-se, pegou o revólver, foi até a porta.

- Quem é?

Silêncio.

- Quem é?

- Você sabe. 

A voz que atravessou a porta era aguda e baixa, um sussurro. Abriu a porta devagar, uma nesga, o pé pronto para impedir que a porta se abrisse mais caso fosse empurrada. A arma escondida atrás do corpo, dedo no gatilho.

- O moço vai atirar em mim com esta arma?

O homenzinho à sua frente não estava com medo. Um metro e meio de altura, magro, o cabelo ralo penteado para o lado numa tentativa de disfarçar a calvície, uns óculos de aro preto e grosso, que aumentavam seus olhos, uma camisa xadrez, calça de veludo e botas pretas.

- Não, mas quando batem na sua porta a esta hora, no meio do mato, a gente fica desconfiado.

- Está mais tranquilo agora? 

- O que você quer?

- Conversar. Posso entrar?

O homem hesitou. O homenzinho permaneceu em silêncio, olhos nos olhos. 

- Vamos sentar aqui fora, está mais agradável.

O homenzinho permaneceu fitando-o por mais um tempo. Então sorriu e indicou-lhe com a mão uma das cadeiras que estavam do lado de fora da casa, na varanda. O homem saiu da casa, ainda com a arma na mão, fechou a porta atrás de si e sentou-se na cadeira indicada pelo homenzinho.

Este, que ainda mantinha o sorriso e não desviou o olhar nenhuma vez do homem, agachou-se, de cócoras, pernas dobradas, equilibrado sobre seus pés. Puxou um cigarro de palha do bolso, levou-o à boca, riscou um fósforo, a chama clareando seu rosto enrugado. 

- Se importa?

- Não.

O homenzinho acendeu o cigarro, deu uma tragada e começou a tossir. Quando parou, estendeu o cigarro para o homem.

- Aceita?

- Parei.

O homenzinho ainda manteve o braço estendido por um tempo, depois desistiu. Deu outra tragada, saboreando a fumaça com evidente prazer. Não tossiu desta vez.

- Está gostando daqui? – a voz do homenzinho saiu fraca, como se estivesse em ar.

- É tranquilo, me deixam em paz.

- Mas o moço tem uma arma.

- Aqui tem onça.

- Mas elas batem na sua porta?

- Às vezes.

O homenzinho deu uma risada curta, e mais uma tragada no cigarro de palha. Um vento frio balançou os galhos das árvores, e o homem cruzou os braços em torno do corpo.

- Tá com frio, moço? Toma uma cachacinha para esquentar.

- Não, estou bem. Também não estou tomando mais cachaça.

- E o que mais o moço não está fazendo?

- Nada, não estou fazendo mais nada.

- É mesmo? Hum! 

Mais uma tragada no cigarro, o homenzinho olhou para o céu estrelado e começou a cantar uma canção, a voz tão baixa e vacilante que o homem não podia entender a letra. Permaneceu assim por um tempo, como se estivera em um transe, cantando e olhando para o céu. Então, retornou, olhou para o homem.

- Traz ela para cá.

O homem ajeitou-se na cadeira e encarou o homenzinho. 

- Ela quem?

- Tsc. – o homenzinho virou o rosto para o lado e deixou sua desaprovação pairando no ar.

- Não tem ninguém aqui!

- Posso ir lá ver?

- Não! – gritou o homem - Você sabe que não pode entrar!

- Hum. – o homenzinho deu mais uma tragada no cigarro – eu só queria ver. A moça é bonita?

- Não é nada disso!

- É bonita, não é? Quantos aninhos?

- Para! Já falei que não é nada disso!

- Peitinho crescendo, nem cabelo tem ainda...

- Para porra! – o homem saltou da cadeira, derrubando o homenzinho e colocando a arma em sua cabeça, ofegando. – Para ou eu te mato, caralho!

O homenzinho ficou calado, o outro homem por cima dele, com a arma na sua cabeça, ofegante, transtornado. Então o homem se levantou, afastou-se do homenzinho.

- Não é nada disso, porra. – o homem agora soava cansado, esgotado. – Ela é pobre, eu gosto dela, vou dar uma vida boa pra ela. Ela me ama.

- Eu sei, eu sei, meu filho. – o homenzinho havia se levantando e agora se aproximava do homem. – Ela não é como as outras, certo?

O homem começou a chorar, o homenzinho aproximou-se.

- Me dá esta arma.

- Não! – o homem afastou o homenzinho com um empurrão e levou a arma à boca, as lágrimas escorrendo pelo rosto.

O homenzinho deu dois passos para traz e abriu os braços, um discreto sorriso formando-se em seus lábios.

- Então vai ser assim?

O homem permaneceu com a arma na boca e fechou os olhos por um instante, mas então vagarosamente tornou a abri-los. Tirou a arma da boca e a jogou no chão, derrotado. 

- Vem comigo – a voz do homenzinho era firme. –Vamos dar uma volta.

O homem olhou para ele, e em seguida para a casa.

- Não se preocupe com ela.

O homem não disse mais nada, e seguiu o homenzinho pela estrada.

A estrada era de terra e cortava a floresta tropical. A noite não tinha luar, e a escuridão destacava as estrelas, milhões de pontos brilhantes da Via Láctea, sobre suas cabeças. O homenzinho tinha o passo rápido, e o homem teve de esforçar-se para acompanha-lo. 

Caminharam em silencio por meia hora, até que o homenzinho saiu da estrada e entrou na floresta. O homem o seguiu, e apesar da escuridão ser ainda maior dentro da floresta, seus olhos já estavam acostumados à pouca luminosidade e ele não teve dificuldade em acompanha-lo. O frio no interior da mata era ainda mais intenso, e os galhos das árvores e os espinhos cortavam seus braços e seu rosto. Insetos grudavam em sua pele e o picavam.

Caminharam por mais meia hora, até que chegaram a uma clareira. O terreno descampado formava um círculo, de uma terra escura e compacta. No meio da clareira, restos de uma fogueira, cinzas e alguns pedaços de madeira que não queimaram. 

O homenzinho ficou parado à entrada da clareira, enquanto o homem caminhava ao redor dos restos da fogueira, inspecionando o lugar.

- É aqui que você trabalha? – perguntou o homem.

- Também. Dependendo do trabalho.

- E o que nós viemos fazer aqui?

- Tem alguém que quer te ver.

O homem olhou ao redor mas não havia ninguém na clareira além deles dois.

- Quem quer me ver? Não tem ninguém aqui!

- Ela já vai chegar.

- Ela quem?

Neste momento ouviu-se um barulho na mata. O homem virou-se na direção dos sons, tentando enxergar algo na escuridão da floresta. Quem quer que fosse, andava sem pressa, aproximando-se devagar da clareira onde estavam.

O homem recuou alguns passos quando finalmente pode ver quem estava se aproximando. Uma onça pintada entrou calmamente na clareira, sem hesitação, seu olhar alternando-se entre o homenzinho e seu convidado. Quando seu olhar se dirigia para o homem, mostrava as presas e emitia um rugido baixo e grave. 

A onça caminhou pela clareira observada com atenção pelo homem. O homenzinho tinha um leve sorriso no rosto. Após uma volta completa em torno do homem, a onça veio até o homenzinho e sentou-se ao seu lado, fitando o homem com tranquilidade.

O homem, olhos fixos nos da onça, quebrou o silêncio que se instalara.

- O que é isso? Que porra é essa? – perguntou, a voz saindo com dificuldade da garganta.

- Uma prova. 

- Como assim? Que prova?

- Você já fez merda demais. Mas eu não posso te condenar. Sou parte interessada. Então, você vai ser julgado por ela, esta é a sua prova. Se você passar está livre, pode voltar pra sua garota e não vai mais me ver.

- Como assim? Vai me julgar pelo que? Como? 

- Pelo quê, você sabe. Como, você vai ver agora.

A onça se levantou e começou a rosnar, primeiro um som contido, os demais num crescendo, enquanto começava a caminhar lentamente na direção do homem.

O homem por sua vez, olhos fixos na onça, dava passos para trás, tentando manter a distância entre os dois inalterada. No entanto, tropeçou em uma pedra, caindo de costas na clareira.

A onça saltou rapidamente em sua direção, e deu-lhe uma patada, na lateral esquerda do tórax, rasgando camisa e pele, dilacerando a carne e os músculos ao lado da costela.

O homem, por sua vez, ao cair, e antes de ser alcançado pela onça, tirou da bota uma faca com a mão direita, e após ser atingido pelas garras da onça, cravou a faca em seu pescoço. A onça deu um salto para trás, surpreendida pela dor, olhos vidrados no homem, olhos que agora refletiam o medo que até então não existia.

O homem levantou-se com dificuldade, o ferimento causado pela onça ardendo como fogo, a roupas empapadas de sangue. Ficou olhando para a onça, a faca na mão e os músculos retesados prontos para um novo embate.

Que, no entanto, nunca aconteceu.

A onça, que ao recuar colocara-se em posição para um novo ataque, foi aos poucos diminuindo a altura dos rugidos, então sentou-se e por fim tombou, o ar passando com dificuldade e barulho pelo sangue que tomara sua garganta cortada.

Silêncio.

O homem, que ainda arfava, ficou olhando para a onça inerte ainda por um tempo, e então olhou para o homenzinho.

- Filho da puta! Filho da puta! Está satisfeito? Está satisfeito agora? Matei a porra da onça! E aí? 

O homenzinho não o encarou. Tinha o olhar perdido em algum ponto da mata, e as palavras saíram a muito custo de sua boca.

- Vai embora daqui. Sai daqui!

O homem ficou um tempo ainda fitando o homenzinho, e então dirigiu-se para o caminho que o trouxera até a clareira. Deu uma última olhada para o homenzinho, que permanecia parado na escuridão, o olhar ainda perdido. Virou-se e saiu da clareira, voltando para a mata escura.

O caminho até sua casa foi longo, a onça o havia machucado para valer e ele estava perdendo muito sangue. Foi caminhando devagar, ainda levou muito mais tempo para retornar, mas enfim chegou em casa.

Não se lembrava de ter deixado a porta da rua aberta. À luz fraca da pequena lâmpada que ficava na varanda, viu pegadas escuras no chão, pegadas de onça. Foi entrando devagar pela sala, coração disparado. Não tinha condições de entrar em nova briga, e nem estava mais com a sua faca.

Mas a casa parecia deserta. Ele caminhou até o quarto onde ela estava e acendeu a luz.

A menina jazia dilacerada, seu tronco e abdômen uma só massa desfigurada e ensanguentada, o chão ao lado da cama uma enorme poça vermelha, e as pegadas da onça espalhadas pelo quarto.

A cena o fez cair sentado no chão do quarto. Não teve coragem de se aproximar da moça, mas tinha certeza de que estava morta. Ficou ali parado olhando para ela por um longo tempo, até que resolveu levantar-se para começar a arrumar suas coisas e partir.

Foi quando finalmente se deu conta da inscrição na parede, feita com o sangue da menina.

“Até breve”.

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